Dica de Teatro – Medeia

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A dica de teatro de hoje é uma adaptação muito especial da tragédia grega Medéia, de Eurípedes, disponível para assistir gratuitamente no Youtube.
Pode parecer insanidade sugerir algo conhecido como “tragédia” nos dias de hoje, em que chegam até nós toneladas de notícias e cenas de violência, tristeza e fatalidades.
Mas a arte não é um telejornal. Sua finalidade não é simplesmente descrever um acontecimento, seja alegre ou triste. A arte vai muito além dos fatos. E uma peça de teatro faz exatamente isso: possibilita-nos uma leitura mais simbólica dos acontecimentos.
Esta peça foi encenada pela primeira vez em 431a.C. durante as Grandes Dionisíacas. Já nessa estreia conseguiu chocar os atenienses que a assistiam.
Antes de eu continuar, devo dizer que ninguém poderá me acusar de dar spoiler, se eu falar de trechos da peça ou mesmo do seu final, pois trata-se de um clássico, dos mais encenados da história do teatro.

Outra dica: a versão em livro permite que você crie suas próprias imagens mentais da peça. Encontrei esta para vender na Amazon. Clique na foto para ver.
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Um resuminho frio e sucinto: Medéia conheceu e ajudou o herói Jasão numa aventura anterior. Apaixonaram-se e se casaram. Por necessidade (que não vem ao caso agora), transferiram-se para Corinto. O rei de lá, Caronte, cedeu uma casa para eles. Porém, Medéia não foi muito bem recebida nessa Cidade-Estado. Além de ser tachada de estrangeira, era também “mal vista” pelas outras mulheres do lugar, especialmente por conta de seu modo “moderninho” de ser. Com temperamento forte, ela transgredia a cultura de submissão das mulheres aos homens. Para complicar, já no banquete de recepção, o Caronte ofereceu a mão de sua filha Creusa (Glauce em outras versões) a Jasão, mesmo diante da presença de Medéia. A raiva por aquelas pessoas foi promovida a ódio e humilhação. Ferveu-lhe o sangue. E mais ainda quando Jasão, por sua vez, achou que a oportunidade seria “imperdível”. Ele herdaria o trono de Corinto! Para completar, Caronte vai até ela e diz que ela deve ir embora da cidade imediatamente e deixar os seus filhos, pois eram herdeiros de Jasão.
Aí então começou seu dia de fúria. Medéia fingiu aceitar tudo isso, mas pediu 1 dia para arrumar seus pertences. Nesse dia fatídico, ela colocou um feitiço (veneno) num bonito manto e pediu para que entregassem à Creusa, como presente. Ao colocar o manto, a princesa morreu envenenada. Morreu também seu pai, Caronte, quando entrou em contato com o manto, ao tomar sua filha nos braços.
Jasão foi logo até Medéia para tirar satisfações. Porém, ficou aterrorizado quando soube que Medéia houvera matado os próprios filhos. Sua vingança então foi completa, deixando Jasão em eterno sofrimento pela perda dos filhos e sem o reino que esperava ter.
“Misericórdia, ela matou os próprios filhos para vingar a traição do marido? Que mulher louca, assassina!”
Sim, se fosse no noticiário. Mas, apesar de chocante, na peça o assassinato dos filhos pode não ser visto pelo fato em si. Podemos considerar que esse fato foi, na verdade, um recurso do Eurípedes para simbolizar as consequências extremas dos sentimentos humanos doentios. Medéia tem o que todos nós temos, mas que não levamos a consequências extremas.
Apesar da barbárie que ela pratica, reconhecemos nela sentimentos que não nos são assim tão estranhos: amor, obsessão, ciúmes, desgosto, desejo de vingança, decepção, humilhação, rejeição, e por aí a fora. Medéia sempre foi atual por causa dessas dimensões humanas que são “eternas”. Faz a gente pensar até na revolta que um estrangeiro sente ao ser tratado com desprezo em determinado país.
Agora o leitor me pergunta: por que vou assistir à peça se o camarada já contou a história?
E, novamente, repito: a história é só o fato.
Ao assistir a peça, você vai SENTIR a Medéia, não vai apenas se informar objetivamente sobre a história. Na atuação da atriz Sara Ribeiro, Medéia não age ou dialoga de forma natural, como as pessoas agem em suas interações cotidianas. Seu rosto e seu corpo são trabalhados para que possamos presenciar o que acontece DENTRO de Medéia. O mesmo faz o ator David Pereira Bastos, que interpreta Jasão (e também o Caronte). Seus movimentos corporais, constantemente ondulados e fluídos não se parecem em nada com o jeito de qualquer um se portar em público, mas nos transmite claramente a personalidade volúvel, insegura e pouco confiável do herói.
O cenário é extremamente simples. Refiro-me principalmente às duas pesadas mesas, que alteram constantemente as nossas percepções em relação aos personagens. Nelas, eles crescem e diminuem. Decolam e rastejam. Logo no começo da peça, quando rola um tipo de flashback  de como os casal se conheceu e se apaixonou loucamente, as mesas parecem representar árvores, pedras, camas, etc. Aliás, é nessas mesas que já podemos perceber como é o amor na concepção de Medéia, algo cheio de apego e possessão.  E, o que achei realmente genial, os personagens usam essas mesas para fazer barulho. Momentos de cólera de Medéia são amplificados quando ela levanta e solta a mesa ao chão. O barulho parece vir de dentro da própria alma da Medéia.
A peça é toda acompanhada, em tempo real, pelo piano de Mario Laginha. Uma coisa que me chamou a atenção é que esse piano mantém-se “normal” praticamente em toda a peça, mas no momento em que Medéia tenta reconquistar Jasão, tentando trazê-lo de volta para seu lado, o ritmo muda para um Jazz americano dos anos 1930. Na hora, não entendi porque achei tão isso tão apropriado. Mas agora percebo que deu um toque de “malandragem”, informalidade, carisma, quase uma propaganda otimista para seduzir Jasão a abandonar aqueles planos de poder.
Então vamos à peça. Dê de presente a você mesmo as próximas 1h e meia de peça. Se não tiver tempo agora, agende para quando puder.
Coloque o fone de ouvido. Ignore as notificações de WhatsApp e cia.
Quando acabar, deixe aqui seu comentário, mostre qual foi a sua percepção. Ou mesmo dê sugestões sobre peças de teatro.
Bom espetáculo!

Direção: João Garcia Miguel

Texto adaptado: Francisco Luiz Parreira

Portugal, 2018

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